- Menu
PopularesSugestão do dia
Mar adentro
Análise Psicanalítica e de Saúde Mental
🔹 A pulsão de morte e o desejo de autonomia
A trajetória de Ramón é marcada por uma tensão entre Eros e Thanatos, conceitos centrais na obra de Freud. Se por um lado há a presença de vínculos afetivos, criatividade (ele escreve poesia), e um forte senso de humor — todos signos da pulsão de vida —, por outro, seu desejo de morrer revela uma manifestação intensa da pulsão de morte, compreendida aqui não como um impulso destrutivo banal, mas como a busca pela cessação do sofrimento e restauração da agência sobre o próprio corpo.
Ramón não quer morrer por estar deprimido, mas sim porque não aceita uma vida em que seu desejo de liberdade e dignidade foi suprimido. Sua escolha aponta para um campo ético delicado onde psicanálise, medicina e filosofia se encontram: o direito de decidir sobre a própria existência.
🔹 O corpo como cárcere
A condição tetraplégica de Ramón transforma seu corpo em um símbolo do aprisionamento do sujeito, quase como uma metáfora do inconsciente reprimido. A cama funciona como uma espécie de cela psíquica, onde ele vive no mundo dos pensamentos, sonhos e lembranças, mas sem poder agir sobre o mundo externo.
Este aprisionamento corporal toca em temas freudianos como a repressão e a renúncia pulsional. Ramón não pode agir segundo seus impulsos mais básicos: andar, se mover, tocar, se relacionar sexualmente. Isso gera uma sublimação: ele escreve, encanta, desafia o sistema legal — atua onde pode, usando a linguagem e o afeto.
🔹 Transferência e desejo nas relações femininas
As duas mulheres da trama representam aspectos psíquicos distintos da relação com a vida e com o desejo:
Juliá, doente e também confrontada com sua finitude, enxerga em Ramón um espelho — ambos desejam o fim do sofrimento. A relação entre os dois carrega uma tensão transferencial profunda: há amor, identificação e uma possível fantasia de morte compartilhada. Ambos se tornam objetos de desejo e projeção do outro.
Rosa, por outro lado, representa o desejo pulsional de viver, o otimismo vital. Sua insistência em convencer Ramón a viver é uma tentativa inconsciente de negar sua própria angústia de morte. Ela investe afetivamente nele como tentativa de salvação mútua — classicamente uma formação reativa contra o desamparo.
🔹 Depressão ou escolha lúcida?
Uma questão importante que o filme levanta é: Ramón está deprimido? Do ponto de vista clínico, ele não se encaixa completamente em um diagnóstico de depressão maior. Seu humor é relativamente estável, ele é afetuoso, criativo, comunicativo. O que há é um juízo racional de que sua vida, nas condições atuais, não é compatível com seu desejo de existência.
A psicanálise reconhece que a vida sem desejo se torna insuportável — e neste ponto, o desejo de Ramón não é morrer em si, mas deixar de viver aprisionado.
🧩 Conclusão
Mar Adentro é um filme que provoca reflexões profundas sobre liberdade, desejo, dignidade e os limites do sofrimento humano. A psicanálise nos ajuda a entender que, por trás do pedido de morte, há um pedido de escuta: “me vejam como sujeito do meu próprio desejo”.
O filme não romantiza a eutanásia, tampouco a combate. Ele nos convida a olhar para a singularidade de cada sofrimento, para a complexidade das escolhas humanas e para a importância de respeitar aquilo que para o sujeito é o essencial — mesmo que isso contrarie nossas próprias pulsões de vida.
Não há comentários ainda.