Análise Psicanalítica e Saúde Mental em Vidro
O filme se aprofunda no conceito da identidade e na luta entre a crença e a descrença, explorando os limites entre delírio e realidade. A história levanta questões psicanalíticas sobre o que define o eu, o poder do simbólico e a repressão das verdades individuais pela ordem social.
A Dra. Ellie Staple e o Superego Repressor
A figura da Dra. Staple pode ser vista como uma representação do superego social, uma instância que impõe regras, racionaliza a experiência humana e tenta reprimir qualquer manifestação que escape ao controle do sistema. Seu papel no filme é invalidar as experiências dos protagonistas, negando que eles sejam especiais e reduzindo suas habilidades a explicações científicas e psicológicas.
Na perspectiva psicanalítica, essa tentativa de “curá-los” reflete um mecanismo de recalque coletivo, onde tudo o que não se encaixa no paradigma racionalista e materialista da sociedade deve ser suprimido. Isso ressoa com as teorias de Foucault sobre a psiquiatria como ferramenta de controle social, onde a loucura é construída como uma categoria para eliminar indivíduos que desafiam a ordem estabelecida.
Kevin Wendell Crumb e a Dissociação como Defesa Psíquica
O transtorno de Kevin é uma representação extrema do Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), um distúrbio frequentemente associado a traumas severos. Na psicanálise, a dissociação pode ser vista como um mecanismo de defesa que fragmenta a identidade do sujeito para proteger sua psique de memórias insuportáveis.
“A Fera” é a personificação da pulsão de sobrevivência de Kevin, um arquétipo do poder que emerge como uma resposta ao sofrimento da infância. Lacan descreve a identidade como uma construção simbólica – Kevin não apenas tem múltiplas personalidades, mas cada uma delas carrega uma função dentro da organização do seu desejo e de sua proteção psíquica.
Elijah Price e a Mente como Fonte de Poder
Elijah representa o arquétipo do mestre manipulador, aquele que transcende sua condição física por meio da inteligência. Sua visão de mundo está profundamente ligada ao narcisismo das pequenas diferenças (conceito freudiano), onde sua fragilidade extrema o leva a buscar um papel grandioso, quase mítico. Para ele, a existência de superpoderes não é uma anomalia, mas sim uma verdade reprimida que precisa ser revelada.
Ele age como um arquiteto do destino, desafiando o discurso psiquiátrico e provando que a realidade não é tão fixa quanto parece. Seu desejo de expor a verdade reflete a luta entre o Real e o Simbólico (conceitos lacanianos), onde a verdade reprimida sempre encontra uma forma de se manifestar.
David Dunn e a Jornada do Herói Psicanalítico
David, por outro lado, é um personagem que constantemente duvida de si mesmo. Seu poder é óbvio, mas ele nunca se vê como um verdadeiro herói. Isso pode ser interpretado como uma resistência ao seu próprio desejo – ele não quer assumir sua posição de destaque, preferindo se esconder em uma vida comum.
O embate final do filme reforça a ideia de que os heróis e vilões não são apenas construções externas, mas também estruturas internas que precisam ser reconhecidas e assumidas. David, Kevin e Elijah representam aspectos diferentes da psique humana:
- David – O ego, que busca equilíbrio e estabilidade.
- Kevin/Fera – A pulsão, que luta contra o trauma e a repressão.
- Elijah – O simbolista, que deseja transcender e revelar a verdade.
O Final e a Revelação da Verdade
No fim do filme, o sistema (representado pela organização secreta que trabalha com Ellie Staple) vence temporariamente ao eliminar os protagonistas. No entanto, a verdade vaza para o mundo, provando que a realidade é mais complexa do que o discurso racionalista permite admitir.
Essa conclusão pode ser interpretada como uma reafirmação do conceito psicanalítico de que o reprimido sempre retorna. Mesmo quando a sociedade tenta apagar os sinais do extraordinário, a verdade encontra um meio de emergir, desafiando os limites do que é considerado normal e aceitável.
Conclusão
Vidro é uma obra que desafia as fronteiras entre loucura e genialidade, realidade e delírio. Ele questiona a construção da identidade e os mecanismos de repressão impostos pelo sistema. Sob uma leitura psicanalítica, o filme nos convida a refletir sobre até que ponto nossas crenças sobre nós mesmos são moldadas por forças externas – e se temos a coragem de assumir quem realmente somos.